Não se cruzaram em Alvalade. Quando Nani chegou ao Sporting, Ronaldo partiu para Manchester. E foi aí, no United, que venceram tudo e se fizeram inseparáveis. Mas Nani estragou-lhe o golo de uma vida.
Podia ter sido o fim. A amizade destruída por causa de um golo. E de um golo que nem o foi, caramba. Estávamos no estádio da Luz, a 17 de novembro de 2010, pela noitinha, e jogava-se um Portugal-Espanha — a feijões, mas ainda assim um Portugal-Espanha. Aos 35′, e ainda com o empate a zero no placard, a bola andava aos repelões no meio-campo, Sérgio Ramos mordia os calcanhares a Cristiano Ronaldo, não o deixou virar-se na direção da baliza e correr para lá. Não deixou, Ramos, mas com o corte que fez na bola, fez também com que a “menina” chegasse a Carlos Martins.
Ronaldo, entretanto, começara a correr, muito, Ramos não teve “pedalada” para o seguir, e Martins rapidamente colocou a bola na frente, onde Ronaldo a queria desde o começo. Quando esta lhe chegou, acelerou mais ainda, tinha Piqué ao caminho, mas ultrapassou-o pela esquerda e sem pisca, seguiu na direção do fundo do relvado, e quando Piqué lhe tentou roubar a bola de “carrinho”, em desespero de causa, Ronaldo trocou-a de pé, voltou para dentro da área e Piqué de carrinho foi, deslizando pelo relvado, vencido. Mas não era tudo, Xabi Alonso e Puyol vieram ao socorro do pobre (e tombado) Piqué, Ronaldo esperou que se chegasse Xabi, Puyol também, rodou o pé por cima da bola, ajeitou-a, e a um metro de Casillas, “picou” a bola por cima do guarda-redes espanhol.
Depois, Ronaldo voltou costas e festejou. Haveria de correr na direção do banco para festejar com todos e não sozinho. Ele fez muitos golos na vida, dezenas e dezenas por época, mas aquele era o golo de uma vida, como só os melhores do mundo fazem um dia e fazem perdurar para sempre. Mas o árbitro francês Antony Gautier anulou-o. “Porquê, porquê”, perguntou Ronaldo, incrédulo. E então entendeu “porquê”: Nani, que estava adiantado em relação ao último defesa espanhol, Puyol, foi lá “confirmar” o golo de Ronaldo com a cabeça, um toquezinho só. Mas estava em fora-de-jogo e o “toquezinho” foi demais. Ronaldo praguejou, muito, e atirou a braçadeira ao chão, e praguejou mais ainda. Estava inconsolável, não com o árbitro, mas com Nani. E nem para ele olhou mais. Sairia ao intervalo em “branco” e, apesar de Portugal ter goleado (4-0) a Espanha, certamente dormiu a pensar no golo que fez. Ou não fez.
No final, Nani explicaria, triste: “Só toquei na bola porque pensei que não estaria em fora-de-jogo. Foi um lance tão rápido e eu estava embalado para tocar. O que disse a Ronaldo no final? Pedi-lhe desculpa, porque era um grande lance dele. Sim, pedi-lhe desculpa.” E Ronaldo perdoou-o. Afinal, a amizade deles, no futebol e fora dele, não começou na Luz, naquela noite, e tem mais o que contar.
Em Alcochete, Cristiano era estrela e Nani “estrelinha”. Em Manchester brilharam os dois
São os dois, Ronaldo e Nani, nados e criados em Alcochete, “produtos” da formação do Sporting. Mas nunca se cruzaram no José Alvalade com a camisola verde-e-branca vestida. A separá-los, um ano. Ou melhor: um ano, nove meses e 12 dias. E a separá-los, também, o talento precoce de Ronaldo e o de Nani, mais maturado.
De Nani, Aurélio Pereira, o “caça-talentos” do Sporting que descobriu Futre ou Figo, diria: “Era um miúdo muito franzino. A determinada altura foi treinar ao Sporting, mas por causa dos transportes — e de uma vida familiar um pouco atribulada — acabou por não ficar. Depois, aos 17 anos, foi fazer um jogo à Academia pelo clube dele. Mal o vi, fiquei convencido de que tinha tudo para vir a ser um grande jogador.” E sobre Ronaldo haveria de dizer, embevecido: “Era um talento fora do vulgar. Custou-nos [Sporting] uma verba que era impensável para um miúdo de 11 anos: 25 mil euros. Nunca se tinha pago tanto. Ele tinha um talento enorme e uma personalidade muito especial. Estamos a falar de um jovem que nunca se escondia, que assumia o jogo, o erro, repetia a jogada e voltava a fazer sem medo.” O Sporting tinha encontrado, ou melhor, Aurélio Pereira tinha encontrado dois talentos sem igual. O problema? Encontrou-os em alturas diferentes.
Quando Nani chegou ao Sporting, com 17 anos e vindo do Real de Massamá, Ronaldo partia para Manchester. Estávamos em agosto de 2003. E enquanto o primeiro começava a partir a loiça toda no United de Alex Ferguson, driblando meia Inglaterra, Nani continuava nos juniores, naquela época e na seguinte, a driblar também, mas adolescentes como ele. E foi campeão do escalão dois anos seguidos, sendo o melhor entre os melhores daquela geração, a de 1986, a de Miguel Veloso ou Yannick Djaló — João Moutinho, também dessa “colheita”, foi chamado por Peseiro em 2004 e não era mais um deles. Entretanto, em Inglaterra, Ronaldo também era campeão, mas daPremier League, entre homenzarrões.
Nani fez o percurso que os bons futebolistas fazem: terminada a formação, foi chamado ao plantel sénior e agarrou um lugar entre os titulares. Talento não era coisa que lhe faltasse nas botas. Mas Ronaldo era diferente, um fora-de-série, um predestinado; com idade de juvenil já László Bölöni o chamara para treinar com a primeira equipa, utilizando-o mesmo num particular contra os bês da Roménia. Gostou do que viu, o romeno, tanto que no ano seguinte o chamou para o plantel campeão nacional em título, ainda Ronaldo estava no seu primeiro ano de júnior. No papel, pelo menos; na teoria já era titular nesse escalão desde os 16 anos.
Pouco a pouco, Ronaldo foi tendo minutos com Bölöni, mostrando ao que vinha — e vinha para ser o melhor do mundo –, e acabaria por tirar do “bolso” do United 15 milhões de euros, ordenando que Ferguson quis que se pagasse a pronto, de tão encantado que ficou com a exibição de Ronaldo na inauguração do novíssimo estádio José Alvalade. Nani custaria um pouco mais ao United (25,5 milhões), mas o encantamento de Ferguson foi igual e rapidamente o fez titular também em Old Traford. Estávamos na temporada de 2007/2008, uma temporada que só terminaria (para Ronaldo e Nani) na final da Liga dos Campeões em Kiev, final na qual o Manchester United venceu o Chelsea nas grandes penalidades.
Nani e Ronaldo venceram tudo em Manchester: a Premier League, a Taça de Inglaterra e a Supertaça. Fora a Liga dos Campeões, claro, a “orelhuda” a que ambos se agarraram em 2008. Ronaldo fez um golo aos 26′ e Nani entrou no prolongamento, ainda a tempo de marcar umpenálti decisivo na “lotaria” dos 11 metros.
Dentro do relvado (com Ronaldo na esquerda e Nani à direita) entendiam-se às mil maravilhas. Fora dele, também. Aliás, tal como para Ronaldo quando chegou a Inglaterra, o inglês era… “chinês” para Nani nos primeiros tempos. E foi Ronaldo quem lhe traduziu o que Ferguson lhe pedia, nos treinos e durante os jogos. Mas Ronaldo foi mais do que tradutor para Nani. Foi também “senhorio” e Nani “inquilino” dele. Sem renda ao fim do mês e durante praticamente um ano. Enquanto não encontraram casa na cidade, Nani e Anderson (vindo este último do FC Porto) viveram na mansão de Ronaldo. Quartos não faltavam, claro. “Quando cheguei a Manchester, mudei-me para casa dele [Ronaldo] com o Anderson. Foi muito importante para nós, porque éramos muito jovens e ele tinha mais experiência. Sabia como lidar com tudo em Inglaterra: as câmaras, as ruas, as regras da estrada, porque é tudo diferente lá. Ajudou muito e deu-me imensos conselhos durante os treinos”, confidenciariaNani anos mais tarde.
Última paragem: Paris? O primeiro “apeadeiro” foi em 2008 (e começou com uma “orelhuda” nas mãos)
Apesar de só ter 23 anos aquando o Euro 2008, Ronaldo era “batido” em fases finais: havia estado no de 2004 (e chorou no final, curvado sobre o relvado da Luz a seguir à derrota com a Grécia) e no Mundial 2006. Nani, por sua vez, estreava-se em 2008 num Europeu pela mão de Luiz Felipe Scolari.
E chegaram mais tarde que os restantes convocados, Ronaldo e Nani, à concentração da Seleção em Viseu – afinal, haviam estado até 21 de maio “concentrados” no United e na final da Champions. Quando chegaram por fim, chegaram ao mesmo tempo, no mesmo carro, inseparáveis dentro como fora dos relvados, e com a mesma “pinta”: roupa a condizer, casacos em pele, jeans rasgadas, fivela no cinto à “cowboy”, orelhas furadas e com brincos a reluzir de diamantes, cabelo a reluzir também (mas de gel e com um chapéu a “ensopar” por cima) e muitos risos. É isso que mais se ouve quando Ronaldo e Nani estão no mesmo local: risos. Até às lágrimas.
Antes da partida para o Euro 2008, e ainda por Viseu, sentaram-me os dois na conferência de imprensa. Não podia vir dali coisa boa. Mas o que “veio” foi uma das entrevistas mais divertidas de sempre (quase todas são “chapa cinco” nas respostas como nas perguntas) na Seleção. Sem filtros. A cumplicidade entre os dois era evidente. Logo no começo, chegou a pergunta “proibida”: será que Ronaldo vai para o Real Madrid? A resposta é “não” — afinal, só assinaria pelos Blancos no verão seguinte. Mas mesmo antes de Ronaldo responder, olhou para Nani — que já estava com os olhos nele — e riu-se. Foi assim a cada pergunta, a conferência inteira. Provocavam-se. E provocavam o riso um no outro. Mas o melhor chegaria em cima do fim. Afinal, qual é a maior qualidade e o maior defeito de cada um deles? Nani responderia as de Ronaldo e vice-versa. Começou o camisola sete. “A maior qualidade dele? Hmmm… tem algumas, tem algumas. É muito importante para o grupo. Ah, pessoalmente? É amigo do amigo. Mas também tem defeitos. Chega sempre atrasado aos treinos. Ainda hoje fui eu quem teve de o ir acordar ao quarto.” Depois, a palavra a Nani: “O Ronaldo é bom rapaz. É brincalhão. Mas também é um bocadinho mentiroso, porque eu não cheguei atrasado ao treino…”
Em França, e depois de cada um ter ultrapassado (é obra!) a centena de jogos pela Seleção, hoje dois trintões, pais de família, ainda de riso fácil e na “primavera” do seu futebol, estão novamente lado a lado. Mais do que nunca. À falta de um ponta-de-lança no Euro 2016 que faça golos, são que eles quem atua na frente, sós, e os fazem à vez: três golos cada um até agora. E foi com os golos de Ronaldo e Nani que chegámos à final de Paris. Ronaldo já perdeu uma final, em 2004, e não quererá perder outra. Nani está na primeira – e não quer ter que chegar à segunda para vencer. O melhor é, tal como em 2008, na final da Liga dos Campeões, deitarem dois pares de mãos à taça (e pés, e cabeça e suor) para que ela não lhes escape. Até porque poderá ser o último Europeu para eles. Nani chegará ao Euro 2020 com 33 anos e Ronaldo com 35. Ou talvez não seja o último. Mas o melhor é vencer já. Pelo sim, pelo não. E pelos bons velhos tempos.
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